Como ja vos confidenciei, tive o privilegio de partilhar casa com os meus avôs paternos. Ainda que fossem dois andares independentes eles estavam por baixo de nós e muitas vezes, durante o dia, eu andava atrás deles. Adorava ouvir as histórias que contavam e adorava aprender a fazer coisas com eles. Herdei do meu avô a paixão de andar descalça. Em casa passo a vida descalça... Nos meus pais desde pequena que corria pela terra descalça...e o Gui também ja herdou isso de mim 😜 O meu avô era igual...ele cavava a terra sempre descalço. Tinha aquelas plantas dos pés super duras por andar sempre descalço na terra. Como vos contei anteriormente, ele nao adoecia com nada. Tinha uma saúde de ferro...até o inimaginável nos bater à porta 😟 No início do meu secundário começamo-nos a aperceber que o meu avô andava cada vez mais esquecido. Havia dias que ficava perdido nos pensamentos...Havia dias que tinha de pensar bem antes de dizer os nossos nomes. E houve até um dia que foi para o monte e se perdeu...não sabia como regressar a casa. Foram uns vizinhos que o ajudaram... Começamos a não achar aquilo muito normal e por isso os meus pais levaram-no ao médico (vocês nao imaginam o esforço que foi para o levar porque ele era completamente alergico aos medicos). O médico pediu logo uma série de exames mas à partida ja sabia de que se tratava...
Quando chegaram os resultados tivemos a pior noticia que nos podiam dar. O meu avô tinha Alzheimer 😢
Para quem ja lidou com a doença sabe do que falo...Para quem nunca lidou posso dizer-vos que é uma das piores doenças que existe. É uma doença muito triste e que desgasta todos os que estão à volta do doente.
Em pouco tempo desaparecemos da memoria dele 😔 Nem a minha avó ele reconhecia. Passava os dias a perguntar quem éramos. Chamava muito pela mãe dele, que tinha falecido ainda ele era novo. Dizia que tinha de ir para casa dele, para os Possacos, porque a mãe estava à espera dele. Nessa altura devia ter uns 78/79 anos, não se lembrava de nada desde a idade adulta, não reconhecia a mulher, os filhos e os netos, mas lembrava-se de tudo da infância dele, nomeadamente o nome da mãe e dos irmãos.
Quando a televisão estava ligada era um filme...gritava com a minha avó que lhe estavam a entrar muitas pessoas pela casa a dentro.
Era uma luta para lhe darmos de comer e para o deitarmos... E depois de noite era uma luta porque passava a noite com delírios...acordava a minha avó e perguntava-lhe o que estava a fazer na cama com ele. A minha avó sofreu muito tadinha. Ver o amor da vida dela naquele estado, sem a reconhecer...ninguém merece mesmo 😩
Até entrar na faculdade ajudei em tudo o que pude. A primeira vez que a minha avó tentou desfazer-lhe a barba foi uma luta porque ele não deixou. Entao ela chamou por mim a chorar desesperada porque não sabia o que fazer. Lá fui eu...peguei na gillete e dei-lhe a volta rapidamente. Consegui desfazer-lhe a barba num instante enquanto brincava com ele.
Depois com o tempo comecei a cortar-lhe eu o cabelo com a máquina... Quando a minha avó não conseguia que ele comesse por vezes chamava por mim...e eu lá lhe dava a volta...Quando não o conseguia deitar chamava por mim e eu lá o levava para a cama! Lembro-me de uma noite ele estar muito agitado e não se querer levantar da cadeira da cozinha, para ir para o quarto. Comecei a falar com ele (já sabia como lhe dar a volta), levantei-o e comecei a caminhar de braço dado com ele. Diz-me ele:
- Onde vamos?
- Vamos dormir - respondi-lhe eu.
- E não és muito nova para dormir comigo? - pergunta ele.
- Avô...sou eu a sua neta. A Catarina... - respondi-lhe enquanto virava a cara para o lado para que ele nao visse as lágrimas a correrem-me pela cara 😢
Se vocês soubessem como é triste ver alguém que amamos assim 😟 Ele está ali connosco mas só de corpo...As memorias é como se alguém as tivesse apagado 😔 Chorei muitas vezes no chão do meu quarto...só queria que aquele pesadelo acabasse. Queria o meu avô de volta e não aceitava o facto da doença não ter cura...Só queria que ele voltasse a reconhecer-me 😔 Sabem...foi ele o impulsionador da minha paixão pela Psicologia e pela Sociologia. Lidar de perto com esta doença foi um dos motivos que me levou a licenciar-me em Sociologia. O tratar dos outros...o ajudar os outros. Nunca exerci na minha área mas mesmo assim sinto-me realizada por ter tirado o curso que tirei. Aprendi muito ❤
Quando entrei na faculdade já não podia ajudar tanto a minha avó. Mas quando ia a casa ao fim de semana tentava ajudar no que conseguia. Nessa altura comecei também a pintar e a cortar o cabelo à minha avó...
No final do meu 2°ano de faculdade o meu avô constipou-se e esteve muito mal. O nosso medico foi lá a casa e mandou-nos logo fazer-lhe uns exames. Quando vieram os resultados aperceberam-se que o meu avô tinha tido uma pneumonia. Esteve internado depois veio para casa e ainda esteve bastante tempo na cama. Isso fez com que o sangue nos pés não circulasse e acabou por ficar com sangue pisado nos calcanhares. Como entretanto já estava melhor, os meus pais levaram-no ao medico para lhe tentarem tirar o sangue dos calcanhares. Como os pés dele por baixo eram muito duros, quando tentaram espetar a agulha para drenarem o sangue, a agulha partiu. Então a solução que arranjaram foi lancetar os calcanhares e espremer aquele sangue pisado. Ele tinha tantas dores depois disso, que em casa se recusava a levantar-se da cama. O meu pai puxava por ele e tentava que ele andasse, mas ele só gritava "doi, doi, doi". Os dias foram passando e ele recusava-se sempre a levantar-se da cama...Foi ficando cada vez mais debelitado 😩 Continuou sempre em casa connosco, ja de fraldas e tudo. Até ao dia que deixou de comer. Precisava da sonda para se alimentar, de argália porque deixou de fazer xixi e de outros cuidados que nao podiamos dar em casa 😔 E acabou por ser internado penso que naquilo a que se chama "cuidados continuados"...já eu tinha iniciado o meu 3° ano na faculdade. Eu não era burra nenhuma... ja tinha 20 anos. Sabia que ele nunca mais recuperaria...que dali só ja podia contar com o pior 😢 Cada vez que ia a casa ao fim de semana e ia visita-lo, era um sufoco para mim. Naquela cama eu não via o meu avô. Via um cadáver...Ele estava muito muito magro...Já com feridas no corpo e cheio de tubos. Por vezes estava com uma luvas (tipo as de boxe) calçadas e as maos presas de lado à cama. Isto para tentarem que não arrancasse mais a sonda do nariz, pois de tanto a arrancar ja sangrava do nariz cada vez que a tentavam meter de novo.
Mas mesmo vendo-o naquele sofrimento todo eu era muito egoísta, porque pedi muito a Deus para nao o levar 😢 Não tinha esse direito eu sei...mas amava-o tanto que não queria vê-lo partir 😔
Nesse ano (2007) o 24 e o 25 de Dezembro foram passados à volta da cama dele. A unica prenda que eu queria era que era voltasse ao que era. Mas ele já só era um corpo morto naquela cama 😩
Mesmo assim, ainda tivemos o nosso milagre de Natal...Ele adorava a aletria da minha mãe. Quando o fomos visitar no 25, ela levou em prato de aletria. O meu pai disse-lhe que não estava bem da cabeça mas ela quis tentar ver se conseguia que ele comesse e pediu autorização às enfermeiras. Elas responderam que podia tentar dar-lhe mas que nao acreditavam que conseguisse porque ele ja nao reagia a nada. Então a minha mãe encostou-lhe a colher aos labios e esfregou-lhe a aletria nos labios para ele sentir o gosto. Vocês nao imaginam como ele devorou aquilo tudo. Não abriu os olhos porque as forças eram poucas, mas conseguiu comer a aletria toda. Choramos de alegria, foi o nosso milagre de Natal ❤
Entretanto no dia 2 fui para o Porto porque dia 4 tinha exame...Dia 3 de Janeiro de 2008, ao final da manha, estava eu a estudar para o exame quando me liga o meu pai.
Muito calmo...começa por dizer:
- Então está tudo bem? Estás a estudar? Olha...fui ver o avô, até fui cedo hoje, para lhe cortar o cabelo. Cortei-lhe o cabelinho todo, mas quando chegou ao fim ja nao abriu mais os olhinhos...
😭😭😭😭😭😭
Gritei e chorei como se nao houvesse amanhã. Naquele dia tiraram-me o chão. Tinha 84 anos quando partiu...Com ele levou uma vida de sofrimento. Trabalhou no duro toda a vida. Em novo passou come. E morreu da forma triste que morreu, com uma doença que lhe arrancou as memorias de uma vida 💔
O meu pai tentou acalmar-me mas eu ja nao ouvia nada...Hoje penso na coragem que ele teve...o pai morreu-lhe nos braços. E ele adorava o meu avô. Nem imagino o choque que deve ter sido 💔 E no meio do sofrimento dele, ainda ganhou forças para me ligar e para dar a noticia com a maior calma do mundo. O meu pai é extremamente protetor comigo e com o meu irmão. É aquele que nos apaga os fogos...é o que nos consola se algo corre mal. Ele e a minha mãe claro. Não poderia pedir melhores pais ❤
Mas voltando ao assunto deste capitulo...quando o meu pai desligou a chamada tive de partilhar a minha dor com o Hugo. Ele ja não me deixou ir sozinha para Valpaços, quis levar-me porque queria estar comigo no funeral. O problema é que eu namorava há 2 anos e meio mas o meu pai não sabia. Ele sempre foi aquele pai durão e protetor, que dizia que namorar só depois de tirar o curso. Mas pior que isso...é que ele dizia sempre que o maior desgosto que eu lhe podia dar era "namorar com um jogador da bola".
Ja estão a imaginar o filme...O resto da história conto-vos no proximo capítulo 😉
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